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Direitos autorais: Inteligência Artificial altera criação de conteúdo

A popularização das ferramentas de IA gera inovação e eficiência na produção artística e científica, mas levanta debates sobre autoria e proteção de obras

Blog produzido por Ana Carolina Cesar, texto redigido por João Elio

A materialização de ideias que anteriormente demandariam horas de trabalho nunca foi tão ágil quanto após a popularização das ferramentas de inteligência artificial (IA) generativas. Com a tecnologia atual, bastam alguns cliques e um prompt bem elaborado para que a IA nos entregue produções de qualidade impressionante, abrangendo não apenas criações literárias, mas também artísticas e científicas.

O que, há uma década, poderia ser visto como um mero truque tecnológico, hoje gera produções dignas de Hollywood, a uma fração do tempo e custo. Contudo, essas facilidades trazem consigo desafios significativos, especialmente no que diz respeito às implicações legais de sua utilização. Este artigo explora as nuances desse debate, examinando as questões centrais relacionadas à autoria, proteção, e os desafios legais emergentes no contexto da IA.

  • A IA como Criadora: Autoria e Originalidade

A questão central no debate entre IA e direitos autorais reside na definição de autoria. Tradicionalmente, o direito autoral protege obras originais criadas por indivíduos, reconhecendo-os como autores. Um exemplo disso é o conceito de “criações do espírito”, disposto no art. 7º da Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998), que define as obras intelectuais passíveis de proteção. O caput do art. 11 reforça essa noção, estabelecendo que “autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.”

Diante desse contexto, surge a incerteza quanto à autoria de obras geradas por IA, como músicas, pinturas ou textos. Quem é o autor? Algumas possibilidades são discutidas entre juristas: (i) as obras criadas pela IA estariam automaticamente em domínio público; (ii) a titularidade das criações geradas por IA seria atribuída aos desenvolvedores da ferramenta; ou (iii) ao usuário final da ferramenta.

Outro ponto relevante é a originalidade. As IAs generativas operam com base em algoritmos que analisam e combinam dados preexistentes, dependendo primariamente de uma vasta base de dados, muitas vezes composta por conteúdos protegidos por direitos autorais. É controverso se o uso de obras protegidas para fins de machine learning constitui ou não uma violação legal, especialmente devido à dificuldade em determinar se os outputs das ferramentas de IA generativas podem ser consideradas obras novas e originais, ou apenas compilações das informações de suas bases de dados.

Um dos casos mais relevantes dessa controvérsia é a disputa legal entre o banco de imagens Getty Images e a Stability AI, desenvolvedora de ferramentas de IA generativa. A Getty Images acusa a Stability AI de infringir mais de 12 milhões de fotografias, incluindo suas legendas e metadados associados, para treinar as ferramentas Stable Diffusion e o DreamStudio.

A disputa surgiu após a ferramenta de IA gerar uma imagem semelhante a uma fotografia de propriedade da Getty Images, reproduzindo inclusive trechos de sua marca d’água. A disputa está sendo apreciado pela Corte do Distrito de Delaware, nos EUA e, até a última edição deste artigo, não há uma decisão sobre a controvérsia.

  • Regulamentação da IA: Solução da Controvérsia?

Para solucionar as diversas controvérsias decorrentes da popularização das ferramentas de IA, a regulamentação dessas tecnologias torna-se cada vez mais urgente. Governos e organizações internacionais buscam estabelecer normas e diretrizes que assegurem um desenvolvimento e aplicação da IA de maneira ética, transparente e segura. Contudo, a criação de um marco regulatório eficiente para a IA é complexa, exigindo um equilíbrio cuidadoso entre a proteção dos direitos individuais e a promoção do progresso tecnológico.

No Brasil, o Marco Legal da IA é estabelecido pelo Projeto de Lei nº 2.338/2023, atualmente em fase de audiências públicas na Comissão Temporária Interna sobre Inteligência Artificial (CTIA). A última versão do texto, apresentado em 4 de julho, traz disposições relevantes na área de direitos autorais, como a obrigação dos desenvolvedores de IA de informar o uso de conteúdos protegidos no processo de treinamento da ferramenta, conforme disposto em regulamentação futura. Também será permitido aos autores proibirem a utilização de suas obras para fins de desenvolvimento de ferramentas de IA, além de obrigar os desenvolvedores a remunerarem os autores cujas obras protegidas sejam utilizadas no treinamento das IAs, prevenindo assim a exploração tecnológica em detrimento dos autores humanos.

Em contrapartida e para incentivar o desenvolvimento científico, o texto inclui novas exceções aos direitos autorais, permitindo o uso de materiais protegidos para fins não comerciais de pesquisa e desenvolvimento de sistemas de IA por instituições de pesquisa, jornalismo, museus, arquivos, bibliotecas e educacionais, respeitando critérios definidos na lei.

Por fim, o art. 65 do Marco Legal da IA prevê o estabelecimento de um ambiente regulatório experimental (sandbox) para os agentes dos sistemas de IA, com o intuito de definir o formato de transparência adequado quanto ao uso de conteúdos protegidos por direitos autorais, permitindo que a operação atual das ferramentas não seja imediatamente impactada pelas novas obrigações.

Embora a atual redação do Marco Legal da IA traga previsões importantes relacionadas à originalidade e forneça dispositivos legais eficazes para a proteção dos interesses dos autores humanos, o projeto de lei não define a condição de autoria das obras geradas por ferramentas de IA. Nesse sentido, é possível que essa definição venha por meio de novas emendas ao texto, ou futuramente por meio de uma revisão da Lei de Direitos Autorais, após o amadurecimento das discussões sobre este tema.

  • Conclusão

A evolução da inteligência artificial desafia as noções tradicionais de autoria e direitos autorais, exigindo uma reavaliação das leis vigentes. O Marco Legal da IA no Brasil é um passo importante, mas ainda deixa indefinida a questão da autoria das obras geradas por IA. A regulamentação futura precisará equilibrar a inovação tecnológica com a proteção dos direitos dos criadores humanos, garantindo um ambiente jurídico que valorize tanto a criatividade quanto a segurança legal.

Além disso, não se pode descartar a possibilidade de surgimento de novos modelos de negócios, como ocorreu com o Spotify, que permitam o licenciamento de conteúdos protegidos por seus respectivos detentores para desenvolvedores de sistemas de inteligência artificial. Diante da revolução tecnológica em curso, é possível que novas soluções venham a surgir para enfrentar os desafios inerentes à utilização de vastas bases de dados no treinamento e aprimoramento desses sistemas. Nesse ínterim, continuaremos a monitorar as emergentes discussões sobre o tema.

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Ana Carolina Cesar é a head de Tecnologia, Propriedade Intelectual, Proteção de Dados e Privacidade do KLA. Assessora clientes em assuntos relacionados a tecnologia, inteligência artificial, mercado de games, mídia publicitária, contratos, questões regulatórias e contencioso. Membro da International Association of Privacy Professionals (IAPP)

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