REVISÃO DE VALORES DE RECEITA BRUTA PARA ENQUADRAMENTO DE PESSOAS JURÍDICAS COMO MICROEMPRESAS OU EMPRESAS DE PEQUENO PORTE NÃO AFASTA CRIME DE FRUSTRAÇÃO DO CARÁTER COMPETITIVO DA LICITAÇÃO, DECIDE STJ
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu que a revisão de valores de receita bruta para o enquadramento de pessoas jurídicas como Microempresas (“ME”) ou Empresas de Pequeno Porte (“EPP”) não afasta o crime de frustração do caráter competitivo da licitação, que, até 01.04.2021, tinha previsão na Lei nº 8.666/93 e que passou a vigorar com a redação dada pela Lei nº 14.133/2021, no artigo 337-F do Código Penal.
No caso concreto, duas empresas teriam apresentado declarações com informações falsas sobre suas receitas brutas, de modo a diminuí-las para participar de licitação restrita a MEs e EPPs, cujo pregão ocorreu entre 08.11.2011 e 14.11.2011. Na ocasião, a Lei Complementar nº 123/2006 considerava como ME a sociedade empresária, a sociedade simples, a sociedade individual de responsabilidade limitada ou o empresário assim definido pelo Código Civil que auferisse, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240 mil. Já quanto à EPP, as pessoas jurídicas mencionadas acima teriam de auferir, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240 mil e igual ou inferior a R$ 2.4 milhões.
No entanto, durante a realização do pregão, em 11.11.2011, foi publicada a Lei Complementar nº 139/2011, que reviu e aumentou os referidos patamares para o enquadramento de ME e EPP, de modo que, ainda que as empresas investigadas possuíssem receita bruta superior àquela declarada, elas passariam a se enquadrar nos limites legais. Apesar da publicação da referida lei ocorrer durante a realização do pregão, o dispositivo que revisou os valores de receita bruta para o enquadramento de ME e EPP apenas entraram em vigor em 01.01.2012, quando do início do ano-calendário seguinte.
Com base nesses fatos, o Ministério Público Federal (“MPF”) propôs Ação Penal em face das pessoas físicas de cada empresa responsáveis pelas supostas declarações falsas. Após o recebimento da denúncia e da apresentação das respostas à acusação, o juiz de primeiro grau absolveu os denunciados sob o argumento de que a Lei Complementar nº 139/2011, por ser mais benéfica na esfera criminal, deveria retroagir para favorecer os denunciados e afastar o crime eventualmente cometido (abolitio criminis), conforme a exceção ao princípio da irretroatividade penal.
Irresignado, após o MPF interpor Recurso de Apelação, que foi improvido, opor Embargos de Declaração, que foram rejeitados, e interpor Recurso Especial, que foi inadmitido no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (“TRF-2”), foi interposto Agravo em Recurso Especial no STJ.
No julgamento do recurso, o Ministro-Relator, Ribeiro Dantas, acolheu as razões do MPF e determinou o prosseguimento da Ação Penal no primeiro grau. Para o Ministro, que foi seguido pelos demais Ministros da Quinta Turma, as disposições da Lei nº 139/2011 ainda não eram aplicáveis ao pregão do qual participaram as empresas. Ademais, se as referidas empresas passaram a ser enquadradas como MEs ou EPPs no ano-calendário de 2012, quando do início da vigência da respectiva revisão de valores de receita bruta, isso não afetaria os fatos ocorridos em 2011, tampouco afastaria eventual crime, uma vez que o que importaria definir é “se, quando apresentadas as declarações para participação no processo licitatório, as duas empresas faziam jus, realmente, à titulação de MEs ou EPPs”, o que somente seria possível verificar ao longo de uma ação penal.
Por fim, a decisão da Quinta Turma do STJ é salutar, pois evidencia a dificuldade e a necessidade de se diferenciar entre uma situação que deixa de ser crime pela promulgação de uma lei posterior (abolitio criminis) e uma situação na qual o que se verifica é apenas a modificação das formas de execução de um crime por uma lei posterior, como ocorreu no caso concreto.
RETOMAR AÇÃO DE DENUNCIADO CITADO POR EDITAL VIOLA DEVIDO PROCESSO LEGAL, DECIDE TRF-1
A Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (“TRF-1”), responsável por julgar em segundo grau os processos de competência federal dos Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins, decidiu que viola a garantia do devido processo legal a retomada do curso da ação penal após a citação por edital sem que o acusado tenha sido localizado. Do mesmo modo, determinou-se a anulação da decisão que determinou o prosseguimento do feito e desconstituição todas as eventuais decisões dela decorrentes.
No caso concreto, um homem foi denunciado em 2010 pelo crime de descaminho e, após o recebimento da denúncia, foi determinada sua citação para apresentar resposta à acusação. Uma vez frustradas inúmeras tentativas de citação pessoal, foi determinada a citação do réu por meio da publicação de edital. Após a publicação do edital em 2012, o réu continuou sem ser localizado tampouco se apresentou para responder ao processo. Dessa forma, foi determinada a suspensão do processo e do prazo prescricional, de acordo com as disposições do art. 366 do Código de Processo Penal.
Em 2021, após requerimento do Ministério Público Federal (“MPF”), o juiz de primeiro grau determinou a retomada do curso do processo, sem a participação do réu. Irresignada com a situação, a Defensoria Pública da União (“DPU”) impetrou Habeas Corpus no TRF-1, no qual requereu a anulação da referida decisão e dos demais atos processuais subsequentes, uma vez que a retomada do curso do processo sem a participação do réu, a despeito da citação por edital violaria o devido processo legal, com previsão no art. 5º, inciso LIV, da Constituição Federal, uma vez que impede o livre exercício do contraditório e da ampla defesa.
O Desembargador-Relator, Cândido Ribeiro, que foi acompanhado pelos demais Desembargadores da Quarta Turma, deu razão à DPU. Em seu voto, Cândido Ribeiro sustentou que o Supremo Tribunal Federal (“STF”) se manifestou recentemente sobre a questão (RHC nº 115.042/DF), oportunidade em que foi decidido que “[t]ratando-se de réu ausente, citado por edital, a retomada do curso do processo, após observado o artigo 366 do Código de Processo Penal, viola a garantia do devido processo legal, considerado o direito de o acusado ser ouvido no Juízo e a necessidade da ciência sobre o conteúdo da acusação”.
A decisão do TRF-1 é salutar, uma vez que mostra respeito e aderência à recente jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, o que confere segurança jurídica aos jurisdicionados. Para além disso, a decisão também salienta a importância da participação do réu ao longo de todo o processo, a fim de que não seja surpreendido com uma condenação transitada em julgado, nem seja privado de seus direitos de se defender pessoalmente ou ser assistido por um defensor de sua escolha, de apresentar provas, requerer diligências e advertir seu defensor sobre testemunhas arroladas pela acusação.