PARA O STF, O DIREITO AO ESQUECIMENTO É INCOMPATÍVEL COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL
No início do mês, o Supremo Tribunal Federal (“STF”) concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.010.606/RJ, no qual foi fixado o entendimento, em repercussão geral, de que “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.
Diante disso, também foi decidido que “eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados casos a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”. No caso concreto, a família de uma vítima de homicídio de amplo conhecimento público, ocorrido na década de 1950, pleiteava uma indenização contra uma emissora de televisão que, no ano de 2004, reconstituiu o caso em um programa jornalístico.
É importante salientar que o referido entendimento, apesar de não possuir natureza puramente penal, poderá gerar incompatibilidades ou incongruências com direitos assegurados a pessoas que foram condenadas criminalmente e já cumpriram suas penas. Nesse sentido, o artigo 93 do Código Penal prevê o direito à reabilitação, no qual o condenado, após o cumprimento da pena, poderá requerer o sigilo dos registros sobre o seu processo e condenação.
A intenção da norma é exatamente assegurar o direito de que uma determinada pessoa não seja perseguida ou prejudicada por tempo indeterminado pelo crime que cometeu, uma vez já cumprida a pena pelo que fez. No entanto, o novo entendimento do STF leva a crer que, por mais que o direito à reabilitação esteja assegurado, eventual divulgação de informações, na internet ou na televisão, sobre o crime cometido por pessoa que já cumpriu sua pena seria lícita, desde que não seja abusiva.
Dessa forma, é de se questionar se o reconhecimento da total incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal seria positivo e desejável, tanto para as famílias de vítimas de crimes populares, como para aqueles que buscam sua ressocialização após o cumprimento da devida pena pelos crimes cometidos.
STJ JULGARÁ DIVERGÊNCIA SOBRE RETROATIVIDADE DA EXIGÊNCIA DE REPRESENTAÇÃO DA “LEI ANTICRIME” PARA O CRIME DE ESTELIONATO
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), que reúne a 5ª e 6ª Turma de Direito Criminal, iniciou julgamento para resolver divergência acerca da retroatividade das mudanças trazidas pela Lei nº 13.964/2019 – também conhecida como “Lei Anticrime” – no tocante à procedibilidade do crime de estelionato, previsto no artigo 171, do Código Penal.
Antes da publicação da Lei Anticrime, o crime de estelionato se processava por meio de ação penal pública incondicionada. Isso significa que o Ministério Público poderia propor a ação penal em face dos investigados, independentemente da vontade da vítima. Com o advento da Lei Anticrime, que entrou em vigor em 23 de janeiro de 2020, houve uma mudança de procedibilidade.
Com a mudança, o crime de estelionato passou a se processar mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido às autoridades (Ministério Público ou Delegacia de Polícia), a ser feita no prazo de 06 (seis) meses, contados do dia em que se teve conhecimento da autoria do crime. Portanto, agora, o Ministério Público somente pode oferecer denúncia em face do autor de estelionato se o ofendido manifestar formalmente sua vontade de que o delito seja apurado, sob pena de decadência do referido direito de representação.
Diante da situação, muitas dúvidas surgiram. Isso porque, de um lado, vigora-se no Direito Penal o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica, de modo que, apesar da nova disposição da procedibilidade do estelionato ser uma norma que regulamenta o processo penal (procedimentos, atos processuais, etc.) e não o direito penal material (crimes e regras de parte geral), tem-se o entendimento de que, genericamente, trata-se de uma norma penal que deveria retroagir para beneficiar os réus.
Por outro lado, em caso de uma retroatividade pura e simples, sem limites, muitas ações penais em trâmite teriam de ser arquivadas, pois não contariam com a representação agora exigida pela lei no prazo de 06 meses. Isso seria evidentemente uma consequência não pretendida pelo legislador, mesmo que ele próprio não tenha mencionado qualquer regra de transição para solucionar o problema na Lei Anticrime.
Dessa forma, as Turmas do STJ foram formando divergências a respeito de como se proceder nos casos concretos. Para a 5ª Turma, em casos anteriores à Lei Anticrime, a representação do ofendido somente pode ser exigida até o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Após o oferecimento, portanto, não se exigiria qualquer representação para os casos anteriores à vigência da nova lei (Habeas Corpus nº 585.179/SP). Tal entendimento, inclusive, já havia sido utilizado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (“STF”) (Habeas Corpus nº 187.341/SP).
Já a 6ª Turma decidiu que a exigência de representação do ofendido pode retroagir enquanto não houver o trânsito em julgado do processo, ou seja, a representação pode ser exigida mesmo que já exista processo ou recurso. No entanto, caso se verifique a ausência de representação em casos anteriores à Lei Anticrime, a Turma fixou o entendimento de que o ofendido deveria ser intimado para se manifestar a respeito da continuidade da persecução penal, no prazo de 30 (trinta) dias (Habeas Corpus nº 583.837/SC).
Até o momento, apenas 03 (três) dos 10 (dez) Ministros da Terceira Seção votaram, de modo que dois deles seguiram o entendimento que prevalece na 5ª Turma e no STF. Apesar disso, é necessário que se dê razão ao entendimento da 6ª Turma do STJ. Isso porque, mais do que a segurança jurídica que se busca com a unificação do entendimento, é preciso que se tenha em mente o motivo da modificação do procedimento que versa sobre o estelionato: o que se pretendeu foi criar um instituto despenalizador, de modo que o Ministério Público não ficasse obrigado a oferecer denúncia em todos os casos de estelionato, mas tão somente naqueles em que houvesse interesse da vítima.
Além disso, ainda que o processo já tenha se iniciado, é importante que a vítima seja ouvida para que ela informe se a persecução penal ainda lhe interessa. Isso, além de promover uma considerável economia de recursos para o Judiciário, certamente contribuiria para a diminuição da crise de superlotação dos presídios brasileiros.
O MINISTÉRIO PÚBLICO PODE REQUERER DADOS SIGILOSOS À RECEITA FEDERAL SEM PRÉVIO CONTROLE JUDICIAL, SE HOUVER AUTORIZAÇÃO DO INVESTIGADO, DECIDE O STJ
A 6ª Turma de Direito Criminal do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) decidiu que o Ministério Público pode requerer diretamente à Receita Federal dados fiscais e bancários sigilosos, sem prévio controle judicial, caso o réu tenha autorizado o afastamento de seu sigilo de forma voluntária e espontânea. No caso concreto, o Ministério Público obteve uma autorização escrita do investigado no qual renunciava a seu sigilo fiscal. Com base nesse documento, o órgão ministerial requisitou à Receita Federal um dossiê fiscal sobre o investigado, a fim de instruir ação penal que apurava crime de peculato, previsto no artigo 312, do Código Penal.
O Relator do caso, Ministro Sebastião Reis Júnior, sustentou que referidas provas tinham sido obtidas da maneira ilícita. O Ministro ressaltou que, apesar de o Supremo Tribunal Federal (“STF”) já ter decidido que é lícito o compartilhamento de dados sigilosos por parte da Receita Federal com o Ministério Público sem prévia autorização judicial (Recurso Extraordinário nº 1.055.941/SP – Tema 990), os Ministros do STF teriam dado a entender que isso não representava uma autorização para o Ministério Público requisitar informações sigilosas à vontade, sem qualquer intervenção judicial.
A despeito do entendimento do Relator, a maioria dos Ministros da Turma acompanhou o voto da Ministra Laurita Vaz, segundo a qual não haveria ilegalidade na requisição dos dados sigilosos pelo Ministério Público, contanto que exista autorização expressa do investigado. A Ministra ainda ressaltou que o sigilo fiscal não é absoluto ou indisponível, mas possui caráter individual, de modo que a obtenção de informações nesses moldes seria lícita.
A decisão do STJ é salutar, pois, em tese, firmou-se o entendimento de que, ainda que a Receita Federal possa fornecer dados sigilosos diretamente ao Ministério Público sem prévia autorização judicial, o órgão ministerial não poderá requisitar livremente os mesmos dados, exceto quando a quebra de sigilo for autorizada pelo próprio réu ou investigado. Assim, tem-se que ainda se faz necessário o requerimento de quebra de sigilo fiscal ao judiciário para que seja feito o devido controle acerca do direito à privacidade dos cidadãos.
A CONSUMAÇÃO DO CRIME DE FRAUDE À LICITAÇÃO INDEPENDE DE PREJUÍZO AO ERÁRIO, DECIDE O STJ
No último dia 10 de fevereiro, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) aprovou a súmula nº 645, segundo a qual “o crime de fraude à licitação [art. 90 da Lei 8.666/93] é formal, e sua consumação prescinde da comprovação do prejuízo ou da obtenção de vantagem”. O texto da súmula teve como referência inúmeros julgados da Quinta e da Sexta Turma do STJ e terá o condão de orientar os demais tribunais brasileiros.
O raciocínio da nova súmula foi exposto recentemente em julgado da Sexta Turma do STJ (Recurso Especial nº 1.498.982/SC), no qual foi fixado o entendimento de que o objeto jurídico que se pretende tutelar com a previsão do referido crime são: (a) a lisura das licitações e dos contratos com a Administração Pública, além (b) da conduta ética e o respeito que devem pautar o administrador público em relação àqueles que pretendem contratar. Dessa forma, ainda que a fraude à licitação beneficie o erário, o crime estará consumado.
É importante salientar que, apesar de profundamente discutido, o entendimento do STJ vem sendo objeto de muitas críticas, pois poderá conduzir a situações contraditórias no judiciário brasileiro. Um exemplo disso é a possibilidade de responsabilização criminal de um indivíduo mesmo em caso de improcedência de Ação Civil Pública instaurada pelos mesmos fatos, por ausência de dano ao patrimônio público.
A tese fixada representa uma inversão da função do Direito Penal, que deve ser o último ramo do Direito a ser acionado para a resolução de conflitos. A partir do entendimento do STJ, haverá o risco de que, mesmo diante da ausência de ilícitos de natureza civil e/ou administrativo e de prejuízo ao erário, estará configurado o ilícito penal, que é sancionado com pena privativa de liberdade.